sexta-feira, 2 de novembro de 2012

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mais maracutaia à vista

O requerimento abaixo, do deputado Romário (PSB-RJ) trata de assunto relevante em relação aos Jogos Olímpicos do Rio 2016. Por se tratar de suspeita de favorecimento ilícito, na venda e distribuição dos ingressos nas Olimpíadas de 2016, de grupos ligados a casos ainda sob investigação internacional, é de suma importância que o caso seja acompanhado desde já.


REQUERIMENTO DE INFORMAÇÃO Nº , DE 2012.

(Do Sr. Romário)

Requer o encaminhamento do

Requerimento de Informação ao

Ministro do Esporte.

Senhor Presidente:

Com fundamento no artigo 50, § 2º, da Constituição Federal, e com

base nos artigos 24, V; 115, I e 116, do Regimento Interno da Câmara dos

Deputados, REQUEIRO, a Vossa Excelência, seja encaminhado ao Poder

Executivo, mormente ao Ministro do Esporte, o SR. JOSÉ ALDO REBELO

FIGUEIREDO, o pedido de informações que ora apresentamos, a fim de

que sejam esclarecidos os critérios de concessão da alocação dos

ingressos para os Jogos Olímpicos Rio 2016, bem como a participação

do membro do Comitê Executivo do Comitê Olímpico Internacional

(COI), Patrick Hickey, na Comissão de Coordenação do COI para o

Rio 2016 e, consequentemente, sobre sua proximidade com o Comitê

Organizador Rio 2016, responsável pela venda de ingressos dos Jogos

Rio 2016.

JUSTIFICATIVA

1- Considerando que o Ministério do Esporte é responsável por

construir uma Política Nacional de Esporte, bem como de trabalhar

ações de inclusão social, garantindo à população brasileira o acesso

gratuito à prática e projetos desportivos, fundado na qualidade de

vida e no desenvolvimento humano;

2

2- Considerando que no dia 2 de outubro de 2009, o Comitê Olímpico

Internacional (COI) escolheu o Rio de Janeiro para sediar os Jogos

Olímpicos e Paraolímpicos de 2016;

3- Considerando que o Comitê Organizador Rio 2016™ é uma

associação civil de direito privado, com natureza desportiva, sem fins

econômicos, formada por Confederações Brasileiras Olímpicas, pelo

Comitê Olímpico Brasileiro e pelo Comitê Paralímpico Brasileiro;

4- Considerando que o Comitê Organizador Rio 2016™ tem como

missão promover, organizar e realizar os Jogos Olímpicos e

Paralímpicos Rio 2016, seguindo as diretrizes do Contrato da Cidade-

Sede, do Comitê Olímpico Internacional, do Comitê Paralímpico

Internacional e da Agência Mundial Antidoping, em consonância com

a legislação brasileira, a Carta Olímpica e o Manual de Regras do IPC;

5- Considerando que o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) é uma

organização não governamental de direito privado, que trabalha na

gestão técnica-administrativa do esporte, atuando no

desenvolvimento dos esportes olímpicos no Brasil;

6- Considerando que compete ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB):

- discutir, viabilizar e acompanhar a preparação das equipes

olímpicas com base nos projetos apresentados pelas Confederações,

atuando na coordenação e gerenciamento desses projetos com sua

experiência e credibilidade e tendo como espelho as melhores

práticas internacionais;

- investir no desenvolvimento técnico das 42 modalidades olímpicas;

promover, organizar, dirigir e coordenar ações voltadas para o

desenvolvimento do esporte no Brasil, incluindo Olimpismo, Esporte

Escolar, Esporte Universitário, Selo COB Cultural, Instituto Olímpico

Brasileiro, Centro de Treinamento Time Brasil, Laboratório Olímpico;

3

- apoiar, acompanhar diretamente a preparação dos atletas do Time

Brasil e organizar a delegação brasileira nos Jogos Olímpicos e nos

Jogos Pan-americanos, além de outras competições multiesportivas,

a partir de um trabalho apoiado no gerenciamento esportivo e na

aplicação das Ciências do Esporte no treinamento e preparação de

atletas.

7- Considerando que a Comissão de Coordenação do COI para o Rio

2016™(CoCom) tem como missão acompanhar a evolução da

organização dos Jogos e que a venda de ingressos no Brasil é de

responsabilidade do Rio 2016™,

Julgamos necessário contar com os seguintes esclarecimentos,

pelas razões que passamos a aduzir.

Sabe-se que o senhor Patrick Hickey é membro do Comitê

Executivo do Comitê Olímpico Internacional (COI) e compõe,

concomitantemente, a Comissão de Coordenação do COI para o Rio

2016 que tem como finalidade acompanhar a evolução da

organização dos Jogos Rio 2016 junto ao Comitê Organizador Rio

2016, responsável pela venda de ingressos das Olimpíadas do Brasil .

Diante desta informação, é fato que há em curso por parte da

imprensa internacional investigação sobre suposto “mercado negro” e

tráfico de influência na negociação dos ingressos relacionados às

Olimpíadas de Verão (Londres 2012) e de Inverno (Sochi 2014).

Segundo levantamento do jornal britânico Sunday Times, o filho

do senhor Patrick Hickey, Stephen Hickey, é funcionário da The

Hospitality Group (THG), subsidiária do Marcus Evans Group, grupo

que é objeto de investigação da Comissão de Ética do COI por

4

suspeitas de desvios e superfaturamento de ingressos durante os

Jogos de Londres 2012.

De acordo com o noticiário internacional, o COI apura também

se o mesmo esquema poderia estar sendo montado para os Jogos de

Inverno da Rússia, em 2014.

Como sede das próximas edições dos Jogos Olímpicos e

Paraolímpicos, o Brasil precisa conhecer mais de perto o teor das

investigações e o relatório final com as conclusões, já que pode estar

na rota dos operadores do “mercado negro” de ingressos para

megaeventos esportivos.

Entendo que cabe ao governo brasileiro, principal financiador do

esporte nacional, cobrar total transparência do Co-Rio 2016,

responsável pela venda dos ingressos para os eventos supracitados,

sobre o plano operacional de venda de ingressos para os Jogos Rio

2016, o qual definirá, em 2013, categorias e preços, quantidade e

disponibilidade, entre outros itens.

Importante que o Ministério do Esporte também fiscalize o

processo de seleção da empresa que irá fornecer o sistema de venda

dos ingressos no Brasil, e acompanhe a escolha do revendedor

autorizado pelas vendas internacionais dos ingressos no exterior.

A presença do senhor Patrick Hickey, do COI – pai de um

funcionário da empresa que vendeu ingressos para os Jogos Londres

2012 e é alvo de suspeitas por parte da imprensa internacional e do

próprio Comitê de Ética da entidade – na Comissão de Coordenação

para o Rio 2016 precisa ser acompanhada pelo Ministério do Esporte

para evitar possível tráfico de influência entre Patrick Hickey e

5

autoridades esportivas brasileiras, já que a responsabilidade pela

alocação ingressos é dos dirigentes do CO-Rio 2016.

Solicitamos, portanto, sejam esclarecidas quais providências

têm sido adotadas sobre a venda de ingressos dos Jogos Rio 2016 e

sobre a relação de dirigente investigado pela imprensa estrangeira

como membro da Comissão que acompanha a organização dos Jogos

no Brasil junto ao CO-Rio 2016, mormente sobre:

a) alocação de ingressos no Brasil;

b) alocação de ingressos no exterior;

c) relação de dirigente do COI investigado pela imprensa

internacional por suspeitas de tráfico de influência na venda de

ingressos nos Jogos de Londres 2012, com o CO-Rio 2016.

Por todo exposto, conclamamos a devida atenção no mais breve

encaminhamento do que ora se propõe.

Sala das Sessões, em de outubro de 2012.

ROMÁRIO

DEPUTADO FEDERAL/PSB-RJ

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano


Recrudescimento do aparato de segurança norte-americano

O complexo de Guantánamo e seus corolários (detenção por tempo indeterminado, tribunais militares) recebem cada vez mais apoio do Congresso. Seria equivocado, portanto, interpretar a reviravolta securitária de Obama como sintoma de uma “presidência imperialista” que espezinha os poderes legislativo e judiciário
por Chase Madar


Em 2008, o candidato Barack Obama prometeu fechar a prisão de Guantánamo, anular a lei de 2001 sobre segurança interior (“Patriot Act”) e proteger de qualquer represália os militares ou membros de serviços de informação que denunciassem abusos da administração. O candidato democrata à Casa Branca se dizia capaz de domar um aparato de segurança que, desde o atentado de 11 de setembro de 2001, se transformou em uma burocracia hipertrofiada e, em geral, incontrolável.

Quatro anos depois, no entanto, Guantánamo continua funcionando, seus tribunais militares retomaram as audiências e o Patriot Act está ativo. Decidido a punir toda divulgação de informação sensível, o Departamento de Justiça entrou com seis processos por violação da lei de espionagem – duas vezes mais que todos os governos precedentes. Além disso, a lista de passageiros proibidos de voar sobre território norte-americano, estabelecida em função de critérios em geral arbitrários e sistematicamente opacos, mais que dobrou entre 2011 e 2012, contando atualmente 21 mil nomes. No fim de 2011, Washington promulgou a Lei de Autorização de Defesa Nacional (NDAA, na sigla em inglês), que permite ao governo federal decretar a prisão – sem julgamento e por tempo indeterminado – de qualquer cidadão norte-americano suspeito de terrorismo, em detrimento do princípio de habeas corpus1 e da separação dos poderes. Por fim, a administração Obama autorizou a eliminação física, fora de suas fronteiras, de pessoas classificadas mais ou menos ativamente como “terroristas”, mesmo que não participem diretamente de ações armadas. Apesar dos atropelos inerentes a essa concepção expeditiva de segurança – como o caso do adolescente norte-americano de 16 anos, filho de um suposto responsável da Al-Qaeda, assassinado por engano em setembro de 2011 no Iêmen –, Obama intensificou o programa “secreto” de execuções sumárias de cidadãos estrangeiros, como mostra a utilização cada vez mais frequente de ações secretas para levantar informação no Paquistão, no Iêmen e na Somália.

Seria ingênuo acreditar que Obama de fato poderia ter acabado com a expansão do aparelho de segurança norte-americano? Sua promessa, antes de tudo, se apoiava sobre um precedente histórico. Em meados da década de 1970, em plena confusão do Caso Watergate e da Guerra do Vietnã, a maioria democrata do Congresso havia restringido os poderes de polícia e vigilância interior que o presidente republicano Gerald Ford tentava ampliar – por mais que a contrarresposta tenha sido a extensão das prerrogativas do Executivo no âmbito militar, notadamente em operações secretas no exterior. Os eleitores de Obama possuíam, assim, fundamentos para dar um crédito às promessas do candidato democrata.

Mas se decepcionaram. Na vida cotidiana dos norte-americanos, a questão da segurança está cada dia mais presente, como demonstram os escâneres corporais instalados em 140 aeroportos do país. Segundo a opinião de alguns especialistas, essas práticas constroem um “teatro securitário” que, em vez de proteger realmente os usuários, os faz perder mais tempo. Um relatório da Administração de Segurança dos Transportes (TSA, na sigla em inglês) indica, além disso, que esses escâneres são “vulneráveis” e fáceis de ludibriar.2 O passageiro pode até se recusar a passar pelo aparelho, mas à custa da revisão completa de sua bagagem, em geral vivida como uma humilhação.

Ainda mais surpreendente é o reforço da vigilância interior durante a presidência de Obama: a administração federal emprega hoje 30 mil pessoas em escutas telefônicas nos Estados Unidos. O Departamento de Segurança Interna, criado em 2002, tornou-se a terceira burocracia mais forte do país – depois do Pentágono e do Departamento de Assuntos dos Veteranos de Guerra – em apenas uma década. Para armazenar os dados recolhidos por esse dispositivo tentacular, está sendo construída uma nova sede em Bluffdale, no estado de Utah, em um terreno de 9 hectares e com custo de US$ 2 bilhões.

É difícil medir em que proporções o Estado de segurança aumentou. Desde o atentado de 11 de setembro, uma intrincada malha de feudos burocráticos, dotados de orçamentos cada vez mais opulentos (aos quais se somam financiamentos privados escusos), desencadeou um boom imobiliário no centro de Washington com a construção de 33 edifícios espalhados sobre uma superfície total de mais de 150 hectares – o equivalente a três pentágonos ou 22 capitólios. Esse novo sistema de vigilância e controle produz, por ano, 50 mil relatórios, ou seja, 136 por dia. Segundo a jornalista do TheWashington PostDana Priest, laureada com um prêmio Pulitzer e especialista em questões de segurança interior, a “festa das despesas securitárias” chegou a US$ 2 trilhões3 em dez anos. E isso sem qualquer autoridade hierárquica que supervisione os vigilantes: o único superior das agências de informação é o diretor do Departamento de Inteligência Nacional (DNI, na sigla em inglês), que na prática não exerce nenhum poder.

Ao mesmo tempo, Washington recrudesceu sua “política do secreto”. Em 2011, 77 milhões de documentos foram classificados como confidenciais – 40% a mais em relação ao ano anterior. Somente o processo de “classificação” custa US$ 10 bilhões por ano, segundo estimativas de William Bosanko, ex-diretor do Escritório de Vigilância e da Segurança da Informação. Não surpreende, portanto, que as desqualificações sejam feitas a conta-gotas. No ano passado, a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) tornou públicos os dossiês em relação à guerra... de 1812 contra a Grã-Bretanha. Apenas organizações sólidas e suficientemente ricas para oferecer um batalhão de advogados experientes conseguem transpor o muro do secreto, invocando a lei de liberdade de informação – embora com sucesso limitado.

Esse aparelho colossal que devora fortunas apresenta, porém, algumas falhas em sua impermeabilidade. Em primeiro lugar, a proliferação das “autorizações de segurança” (security clearances) – atualmente, 854 mil norte-americanos dispõem de acesso parcial às informações confidenciais – coloca em questão a própria noção de secreto. Além disso, é comum que material classificado como secreto transite de computadores portáteis à internet graças a programas peer-to-peer geralmente instalados por filhos de um ou outro alto funcionário grisalho e pouco familiarizado com a rede.4 Matthew M. Aid, historiador da espionagem dos Estados Unidos, surpreendeu-se ao encontrar computadores do Exército norte-americano à venda nos mercados de Cabul, com seus discos rígidos intactos e repletos de arquivos classificados.5 E, apesar da repressão cada vez mais severa, os altos funcionários da administração norte-americana continuam a fornecer informação considerada secreta a jornalistas. O confidencial “Relatório de Inteligência Nacional sobre o Afeganistão” vazou em janeiro passado, e as ações secretas no Paquistão são objetos frequentes de indiscrição na imprensa.

Durante os dois mandatos de George W. Bush, a intensificação da segurança nacional foi considerada uma ameaça por numerosos norte-americanos; hoje, já não é assim. Desde a Segunda Guerra Mundial, parece que a defesa das liberdades civis progride nos Estados Unidos somente quando o Partido Democrata está na oposição, como no início da década de 1970. Mas, quando chega ao poder, o movimento parece se dissipar. Atualmente, vários intelectuais pró-democratas se empenham em explicar ao público que suas objeções não se dirigem ao aparelho de segurança estatal enquanto tal, e sim à utilização do dispositivo pelo partido “mau”. “Esse argumento é comum entre os progressistas que se recusam a criticar Obama, como o faziam com Bush”, lamenta o jurista Jonathan Turley.6Se as críticas de esquerda se destacam pela timidez, os ex-responsáveis da administração Bush – como Richard (“Dick”) Cheney – não deixam de aplaudir o presidente por sua dedicação à segurança nacional pós-11 de Setembro.

No início de seu mandato, Obama parecia firme na manutenção de suas promessas. Rapidamente, porém, se viu confrontado com a hostilidade do Parlamento. No dia 21 de maio de 2009, o Congresso se recusou a liberar os US$ 80 milhões necessários para realizar esse projeto. Sem levar em conta essa obstrução, o procurador-geral dos Estados Unidos, Eric Holder, anunciou discretamente que cinco detentos de Guantánamo seriam transferidos para Nova York para responder diante de uma corte de justiça civil. Controversa, a decisão se chocava com a oposição arisca dos representantes nova-iorquinos, obrigando Obama a admitir que ele não poderia fechar a prisão no prazo anunciado. Desde então, o complexo de Guantánamo e seus corolários (detenção por tempo indeterminado, tribunais militares) recebem cada vez mais apoio incondicional do Congresso, notadamente entre os democratas. Seria equivocado, portanto, interpretar a reviravolta securitária de Obama como sintoma de uma “presidência imperialista” que espezinha os poderes legislativo e judiciário.

De todo modo, a expansão rápida da segurança nacional não é um fenômeno novo na história dos Estados Unidos. O atual presidente perde nesse quesito se comparado ao distante predecessor Harry Truman (1945-1953), democrata que, embebido no anticomunismo em voga após a Segunda Guerra Mundial, aumentou consideravelmente o arsenal de vigilância e repressão internas. Essa política recrudesceu sob a presidência de John F. Kennedy (1961-1963) e Ronald Reagan (1981-1989). Em tempos de Guerra Fria, a segurança de Estado obtinha todos os fundos e a autonomia que reivindicasse.

Se por um lado os norte-americanos execram qualquer forma de ingerência do Estado em sua vida privada, por outro se adaptam bem às disposições de segurança. Os liberais (facção minoritária do Partido Republicano) nutriram esperanças de que o Tea Party, particularmente diligente em relação à liberdade individual, conseguiria brecar o aparelho de controle e reduzir as intervenções militares norte-americanas no exterior. Mas esqueceram que o liberalismo de direita desse partido está particularmente preocupado com a defesa do direito de propriedade, razão pela qual seus representantes no Congresso votaram em uníssono a favor da retomada do Patriot Act em 2011. Por mais floreada que seja sua retórica anti-Washington, o Tea Party está perfeitamente à vontade com as políticas intrusivas levadas a cabo em nome da segurança nacional.

Hoje, a resistência contra a ideologia securitária está fragmentada em pequenos grupos dispersos tanto à esquerda como à direita. Estável e dotada de meios consequentes, a União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), de centro-esquerda, milita há décadas contra a vigilância ilegal, o segredo de Estado e os abusos de poder. Curiosamente, a única personalidade política nacionalmente conhecida que tomou uma posição clara contra o exagero securitário é o republicano Ronald (“Ron”) Paul, que foi candidato à investidura de seu partido para as eleições presidenciais de novembro. Eleito do Texas à Câmara dos Representantes, esse liberal radical encarna uma pitoresca mistura de discurso anti-imperialista e ortodoxia ultraliberal. Contudo, do lugar de onde vêm, todas as tentativas de defender as liberdades civis fracassaram. Se encontram algum eco eleitoral, é em certas zonas pouco habitadas, situadas no interior do país (estados montanhosos, sudoeste e norte do Meio-Oeste), e não nas aglomerações costeiras. Tanto na Califórnia como em Nova York, os senadores democratas possuem notoriamente a tendência de andar de mãos dadas com as pontas da segurança nacional e com os empresários das telecomunicações, grandes provedores de tecnologia para os programas de vigilância estatais.

A expansão da burocracia securitária se dá no mesmo ritmo das intervenções militares norte-americanas no exterior. Enquanto os Estados Unidos se confrontam com uma grave crise orçamentária, alguns políticos, no seio do próprio Partido Republicano, buscam reduzir os orçamentos do Exército. Os dispositivos de vigilância serão também objeto das políticas de austeridade fiscal?



Chase Madar é advogado de direitos civis e coautor do relatório “Segurança com dignidade: alternativas para o sobrepoliciamento em escolas”, Nova York, julho de 2009.



1 Princípio jurídico que impede a prisão de uma pessoa sem julgamento ou prova.

2 David Kravets, “Homeland Security concedes airport body scanner ‘vulnerabilities’” [Segurança Nacional diz que escâneres corporais dos aeroportos são “vulneráveis”], Wired, São Francisco, 7 maio 2012. Disponível em: www.wired.com.

3 James Bamford, “The NSA is building the country’s biggest spy center (watch what you say)” [A NSA está construindo o maior centro de espionagem do país (cuidado com o que você diz)], Wired, 15 mar. 2012.

4 Dana Priest e William M. Arkin, Top secret America: the rise of the new American security State [América secreta: o surgimento de um novo Estado de segurança norte-americano], Little Brown, Nova York, 2011.

5 Matthew M. Aid, Intel wars[Guerras da Intel], Bloomsbury, Nova York, 2012.

6 Jonathan Turley, “10 reasons why the U.S. is no longer the land of the free” [10 razões pelas quais os Estados Unidos não são mais a terra dos livres], The Washington Post, 4 jan. 2012.
02 de Outubro de 2012

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Novas expressões do conservadorismo brasileiro

A entrevista abaixo, concedida por André Singer ao Le Monde Diplomatique Brasil (http://www.diplomatique.org.br), dá uma boa indicação de uma das maiores dificuldades da esquerda contemporânea no Brasil. Indica também como grupos oportunistas de direita ocuparam um espaço que seria naturalmente da esquerda, o que gera aberrações como a reeleição em primeiro turno de Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, com mais de 60% dos votos.

......

Segundo o cientista político André Singer, a quebra da hegemonia da esquerda no plano cultural e a resistência aos programas sociais do lulismo e à resultante ascensão social estão na raiz das ondas conversadoras que prosperam atualmente no Brasil

por Luís Brasilino

DIPLOMATIQUE – Em debate na USP realizado em agosto, o senhor identificou que a esquerda brasileira perdeu a hegemonia no plano cultural que possuía nas décadas de 1960 a 1980. Como se deu esse processo?

ANDRÉ SINGER – Parto de artigo famoso do professor Roberto Schwarz1 em que ele sugere a ideia de que houve um fenômeno inesperado depois do golpe de 1964: em lugar de uma retração da cultura de esquerda, tivemos um período de expansão e até de hegemonia cultural – não política − da esquerda. Fiquei com isso na cabeça e me ocorreu, embora nunca tenha podido escrever a respeito, que talvez essa hegemonia cultural tenha persistido até o final dos anos 1980. Isso porque, passado o período mais duro da repressão, que começou com o AI-5 em dezembro de 1968 e foi até a chamada abertura com o [Ernesto] Geisel em 1974, essa hegemonia cultural da esquerda voltou. Lembro bem que, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, praticamente não se encontravam pensadores, articulistas e ideólogos que tomassem posições abertamente de direita. Estávamos sob hegemonia política da direita, mas no plano cultural a hegemonia da esquerda continuou e até se acentuou no final dos anos 1970, quando se iniciou o que talvez tenha sido, por sua capilaridade, o maior movimento grevista ocorrido no Brasil. Esse movimento de base gerou o que chamo de “onde democrática”, aproximadamente de 1978 a 1988, com uma profusão de movimentos organizados configurando uma democratização da sociedade por baixo, e isso acentuou ainda mais a hegemonia cultural da esquerda. Paralelamente, no final dos anos 1970, começo dos 1980, tem início no mundo a onda neoliberal.

DIPLOMATIQUE – E o Brasil estava em descompasso com essa tendência.

ANDRÉ SINGER – O neoliberalismo no Brasil foi retardado por essa conjuntura, cujo emblema maior talvez tenha sido a campanha das “Diretas já”. Só que, no plano mundial, começou a crescer o neoliberalismo, um fenômeno ideológico que o [historiador inglês] Perry Anderson classifica como o de maior sucesso de toda a história. Ou seja, não é apenas um conjunto de políticas governamentais, mas uma concepção de mundo que ganhou corações e mentes. Finalmente, entre o fim dos anos 1980 e começo dos 1990, o neoliberalismo entrou no Brasil.

DIPLOMATIQUE – A eleição de 1989 é um marco dessa inflexão?

ANDRÉ SINGER – É um marco desse processo, que depois foi aprofundado pelas políticas do governo Fernando Henrique Cardoso. Mas não é só isso, porque estamos falando de hegemonia cultural. O que acontece é que os valores de mercado, de ascensão individual, de competição e os valores ligados a uma intensa mercantilização dos espaços públicos começaram a se tornar correntes, sobretudo na chamada classe média tradicional e depois em estratos médios mais amplos. Então, passamos a assistir ao surgimento de manifestações ideológicas, com articulistas, autores de livros e até artistas, produtores influentes, que defendiam abertamente esses pontos de vista, algo que não se encontrava até meados dos anos 1980. Assim, a presença quase total que a esquerda tinha no plano da cultura foi quebrada e passou a haver uma competição na qual continua existindo uma esquerda, mas a direita é crescente. Com isso, não quero dizer que ela necessariamente vai se tornar hegemônica, mas passou a haver uma competição.

DIPLOMATIQUE – Qual é o papel das Igrejas nesse processo?

ANDRÉ SINGER – Esse é um fator extremamente importante, porque o Brasil é um país onde o catolicismo era e continua sendo muito forte. É visível que a inflexão da Igreja Católica para a esquerda nos anos 1960 e 1970 impactou muito no sentido dessa hegemonia cultural. A influência da Igreja Católica no Brasil era enorme, continua sendo muito grande, e, quando ela virou para a esquerda, arrastou camadas extensas da sociedade. Nos anos 1980, a onda neoliberal influenciou a Igreja com uma virada para a direita que começou com o papa João Paulo II e lentamente foi entrando no Brasil. Isso é muito importante para entender a presença da hegemonia cultural da esquerda e depois sua quebra. A esse fator se soma um segundo, que é a avalanche pentecostal e neopentecostal no Brasil. O crescimento das confissões evangélicas parece ser compatível com a proliferação de uma ideologia mais conservadora. É difícil fazer afirmações categóricas, porque esse universo é muito diversificado, mas a impressão que tenho é que as confissões pentecostais e neopentecostais tendem a favorecer uma percepção de que a melhora das condições de vida depende do esforço individual, não de movimentos coletivos.

DIPLOMATIQUE – O senhor também identifica outras ondas conservadoras que extrapolam o plano cultural, especialmente entre a classe média paulistana. Quais são elas?

ANDRÉ SINGER – Em termos de classe propriamente, não há dúvida de que esse segmento tem uma propensão conservadora por razões materiais. Trata-se de uma parcela dentro de uma sociedade muito desigual como a brasileira, que tem privilégios, que tem o que perder, portanto, há motivos para uma inclinação no sentido da manutenção da situação que a beneficia. Porém, o que aconteceu é que uma parte desse segmento, que estou chamando de classe média tradicional, entrou e participou da frente antiditadura durante os anos 1970 e 1980, gerando uma simpatia por posições mais à esquerda. Isso explica também certa entrada que o PT chegou a ter nesses segmentos no começo de sua trajetória. Essa situação mudou radicalmente com o surgimento do lulismo, um processo dos últimos dez anos.

DIPLOMATIQUE – É desse realinhamento que o senhor trata em seu novo livro?2

ANDRÉ SINGER – Tem a ver, mas nesse caso é um fenômeno particular dentro do realinhamento: a classe média tradicional se fechou em bloco contra as políticas sociais promovidas pelo lulismo. Parece ser uma reação ao processo de ascensão social de setores que antes estavam estagnados numa condição de muita pobreza. É um fenômeno muito recente e não está bem pesquisado, mas a gente vê, ouve conversas, lê no jornal essa reação à presença de pessoas de renda mais baixa nos aeroportos. O que isso significa? Esses espaços eram exclusivos; só pessoas com renda mais alta podiam frequentar.

DIPLOMATIQUE – Sintomático disso são as reclamações por parte das classes média e alta sobre uma crescente dificuldade de encontrar empregados domésticos.

ANDRÉ SINGER – É, isso é o elemento que coloquei no meu livro Sentidos do lulismo. Chama muito minha atenção também porque houve realmente uma mudança no trabalho doméstico, com elevação da renda e melhora das condições de trabalho. Isso tem a ver com o fato de que caiu o desemprego e entraram em cena programas sociais que criaram um piso, dando a essas pessoas a possibilidade de escolher não trabalhar por menos de certa quantia, o que é extremamente importante se considerarmos que existem cerca de 6 milhões de empregados domésticos no Brasil. É um elemento desse conjunto de mudanças que está ocorrendo no Brasil e, aparentemente, há uma reação a isso por parte da classe média. Há também uma terceira onda, que é ainda menos conhecida e mais recente: um neoconservadorismo em uma parcela bem pequena do conjunto das 30 milhões de pessoas que ultrapassaram a linha de pobreza nos anos Lula, um segmento que deu um passo além, subindo não um, mas dois ou três degraus. Um fator disso tem a ver com o medo da mudança. Essas pessoas teriam certa consciência de que o processo de ascensão não durará para sempre e, portanto, não seriam simpáticas a políticas para promover a ascensão de novas camadas, pondo em risco aquilo que já ganharam. Outro elemento desse neoconservadorismo é que, às vezes, se nota entre aqueles que sofreram um processo de ascensão social uma antipatia com os programas sociais. É curioso. É como se essas pessoas se “dessolidarizassem” daquelas que ainda precisam da transferência de renda, compartilhando uma impressão de que o processo de ascensão social decorre do esforço individual, e não de políticas coletivas. Um terceiro fator, mais específico da cidade de São Paulo, é a questão do empreendedorismo. Isto é, há uma quantidade de pessoas envolvidas com pequenos negócios e tentando melhorar de vida por meio deles. Bom, esse pequeno empreendedor tem uma tendência conservadora, justamente porque ele só conta consigo mesmo, diferentemente de um assalariado.

DIPLOMATIQUE – O que organiza esse movimento conservador? Não há um partido que canalize essas ondas. Pode-se dizer que a mídia cumpre esse papel?

ANDRÉ SINGER – Essas ondas conservadoras não estão sendo expressas no plano da política, sobretudo da política partidária. Por quê? Porque nesse ponto entra em jogo outro fator, que é o realinhamento eleitoral. À medida que o lulismo obteve uma maioria no país, a oposição foi obrigada a jogar com as regras do jogo impostas por esse movimento. Essa é a principal consequência do realinhamento. Ele fixa uma agenda, por isso o lulismo é tão importante, porque determinou uma agenda no país, e esta é, fundamentalmente, a redução da pobreza. Sendo essa a agenda, a oposição não pode expressar nitidamente o ponto de vista de sua base social, porque assim ela perderia as eleições. Essa é a razão pela qual o candidato do PSDB em 2010, o ex-governador José Serra, propôs duplicar o número de pessoas atendidas pelo Bolsa Família, em lugar de combatê-lo, como gostaria a classe média tradicional. Desse modo, ocorre um fenômeno curioso: há um crescimento da ideologia conservadora na sociedade, mas ela não encontra expressão na política. Quanto aos meios de comunicação, nós precisamos entender o seguinte: o conservadorismo no Brasil é muito antigo e tem um lastro histórico profundo. O diferente nessa história foi o período de hegemonia cultural da esquerda. Agora, estamos voltando para um momento anterior, mas que é de uma certa normalidade, porque o Brasil tem esse lastro conservador. Os meios de comunicação têm um papel nisso? Certamente. Mas é preciso também considerar que a análise dos meios de comunicação não deve ser feita em bloco; eles não são uma coisa só, há certa heterogeneidade. [Porém,] Partes do sistema de mídia certamente compõem essa primeira onda conservadora que está quebrando a hegemonia cultural da esquerda.

DIPLOMATIQUE – Como o lulismo, um fenômeno tão contraditório, opera nessa chave?

ANDRÉ SINGER – O lulismo é uma nova síntese que junta elementos conservadores e não conservadores. Por isso é tão contraditório e difícil de entender. O lulismo pegou um apreço pela manutenção da ordem que tem ressonância nos setores mais pobres da população. Nesse ponto, retomo a questão de que, na formação social brasileira, se tem um vasto subproletariado que, por estar aquém da condição de proletário, não tem como participar da luta de classes, a não ser em situações muito especiais e definidas. Assim, o que o lulismo fez foi juntar esse apreço pela ordem com a ideia de que é preciso mudar. Que tipo de mudança? A redução da pobreza por meio da incorporação do subproletariado ao que chamo de cidadania trabalhista. Desse modo, o lulismo propõe transformações por meio de uma ação do Estado, mas que encontra resistência do outro lado. Basta prestar atenção no noticiário para ver como o embate político está posto o tempo todo nas decisões econômicas, no braço de ferro a cada momento em que se precisa baixar os juros, aumentar o gasto público ou controlar o câmbio. Essas decisões passam por um tremendo embate político que não está nas ruas; é preciso ler o jornal com atenção para perceber. O lulismo propõe mudanças, mas sem radicalização, sem um confronto extremado com o capital e, portanto, com a manutenção da ordem. Nesse sentido, é um fenômeno híbrido, que captura um tanto desse conservadorismo. Por isso uma análise mais simplista e dicotômica não consegue dar conta da complexidade da situação que estamos vivendo.

DIPLOMATIQUE – Em 2010, o senhor deu uma entrevista destacando a importância de o PT se manter na esquerda para politizar esse subproletariado.3 É isso que pode frear essas ondas conservadoras?

ANDRÉ SINGER – O Brasil ainda tem uma herança daquilo que chamei de grande onda democrática dos anos 1980. Que herança é essa? Primeiro a Constituição, com mecanismos de participação direta e, além disso, dispositivos efetivos de organização da sociedade. Grandes movimentos sociais se organizaram e uma parte deles segue atuando na sociedade, enquanto novos surgem, embora também seja possível identificar certos movimentos que declinaram. O Brasil ainda tem energia organizativa de baixo para cima. Segundo pesquisas que li, [essa energia] foi incrementada pelo Bolsa Família. Principalmente em comunidades do interior, as mulheres estão adquirindo certa autonomia a partir do momento em que têm um cartão, não dependem de mais ninguém e recebem uma quantia de dinheiro por mês, recurso a que elas nunca tiveram acesso e que é, sobretudo, constante, com o qual elas podem contar. Há indicações de que essas mulheres estão se organizando, por exemplo, em cooperativas, empreendimentos igualitários de mudança de sua condição de vida. Tudo que seja organização da sociedade pela base ajuda a frear essas ondas conservadoras. Não há motivo para imaginar que essa onda conservadora venha de maneira avassaladora, que não há nada do outro lado. Sobre a questão do PT, gostaria de observar que, como eu disse em 2010, continuo acreditando que este momento é especial, porque se abriu uma janela de oportunidade para o diálogo da esquerda com os segmentos mais pobres da população. Isso é muito interessante porque, sobretudo no Nordeste, esse era o setor que votava normalmente com o conservadorismo e agora está com o lulismo. É uma oportunidade ímpar de politizar esses setores, no sentido da transformação social. No entanto, de 2010 para cá, passados quase dois anos, não vejo o PT muito engajado nesse tipo de trabalho. Eu às vezes temo que essa oportunidade seja perdida, uma oportunidade que está aberta para toda a esquerda. Porém, os setores da esquerda que não estão no PT têm tido dificuldade para compreender os avanços sociais e simultaneamente o impacto conservador que o lulismo representa. Há que se entender essa contradição e, ao não entender, perde-se a plataforma de diálogo com os setores que estão sendo beneficiados por essas políticas.

Luís Brasilino

Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.


Ilustração: Daniel Kondo


1 “Cultura e política, 1964-69”. In: Roberto Schwartz, O pai de família e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

2 Singer identifica que, desde a reeleição do presidente Lula em 2006, houve uma aproximação do subproletariado em direção ao lulismo e um distanciamento do PT por parte da classe média tradicional. Ver Os sentidos do lulismo, Companhia das Letras, São Paulo, 2012.

3 “Cabe ao PT politizar o subproletariado”, Brasil de Fato, São Paulo, n.374, 29 abr.-5 maio 2010.



02 de Outubro de 2012


Palavras chave: conservadorismo, entrevista, André Singer, Igreja, hegemonia, cultura, empreendedorismo,classe média, Igreja Católica, Lula, lulismo, trabalhadores, comportamento, sociedade, esquerda, direita,programas sociais, Classe C, classe social, PT, desenvolvimento, segurança, mídia

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Pé de Vento - Grandes Aventuras

Animações para o Pé de Vento - Grandes Aventuras em: http://www.pedevento.org/grandesaventuras/

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A energia renovável vai ao espaço


MEIO AMBIENTE
A energia renovável vai para o espaço
No solo, a energia solar, apesar de ser uma boa opção em escala local, acarretaria problemas em nível global, pois é o modo de geração de energia que exige maiores extensões de terra

por Amâncio Friaça



Em 22 de maio de 2012, o foguete Falcon 9, da empresa SpaceX, partiu de Cabo Canaveral no primeiro voo orbital privado, transportando a cápsula Dragon para reabastecer a Estação Internacional Espacial (ISS, na sigla em inglês).1 O lançamento bem-sucedido foi saudado como um marco histórico na exploração do espaço. A utilização de naves privadas pode reduzir o custo do transporte para fora da Terra em 70%. Deu-se mais um “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. Essa citação, de um repórter norte-americano por ocasião do lançamento do Sputnik, encontra-se no segundo parágrafo de A condição humana, de Hannah Arendt. A filósofa ilustra com essa fala o profundo significado do evento da saída da humanidade ao espaço, que “em importância ultrapassa todos os outros”.2
A maior facilidade de nos alçarmos até a órbita terrestre torna mais próxima a energia solar produzida no espaço (ESE). Esta seria muito mais eficiente do que a gerada no solo e com impacto ambiental desprezível. O advento de empresas de lançamento ao espaço, como a SpaceX, transformou a ESE de uma fantasia futurística em um projeto plausível. O rápido desenvolvimento da transmissão sem fio de energia auxilia ainda mais a passagem da ficção científica para o dia a dia, permitindo que a energia gerada no espaço seja transformada em feixes de laser ou micro-ondas, captada em estações de recepção em terra e reconvertida em eletricidade. O Japão, por seus escassos recursos naturais e por temor em relação à energia nuclear na era pós-Fukushima, tomou a dianteira nessa área. O país planeja uma usina de energia solar no espaço a ser colocada em órbita geoestacionária (a 36 mil quilômetros da Terra) por volta de 2030.3
A discussão da ESE é especialmente oportuna neste momento em que a ONU declarou 2012 o Ano Internacional da Energia Sustentável para Todos.4 Como parte das celebrações do Ano Internacional, realizou-se, de abril a maio de 2012, no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, o Painel Astrobiologia, Energia e Sustentabilidade (Paes),5 dentro da disciplina de astrobiologia “A vida no contexto cósmico”. A astrobiologia, o estudo da vida no Universo, tem muito a dizer a respeito, já que um de seus temas centrais são os mecanismos de sustentação de um aporte continuado de energia por tempos longos o suficiente para que possa ocorrer a evolução darwiniana. Durante o Paes, refletiu-se sobre como pesquisas fundamentais em astrobiologia – habitabilidade, evolução das biosferas e impacto humano na Terra e além – poderiam contribuir para a realização dos objetivos do Ano Internacional – acesso universal à energia, eficiência energética e energias renováveis. Dada a natureza do Paes, um dos temas abordados foi a ESE.
Energia renovável é aquela que pode ser mantida em altos níveis por um tempo indefinido sem o esgotamento de sua fonte. Nas considerações da astrobiologia, energia é um dos três requisitos básicos da vida: um biossolvente (na biologia terrestre, a água); materiais biogênicos (para a vida terrestre e provavelmente qualquer vida alienígena, compostos orgânicos) e uma fonte de energia livre. O último ponto é particularmente importante. Vida é caracterizada, antes de tudo, por não equilíbrio sustentado por períodos de tempo extremamente longos, durante o qual uma fonte de energia deve estar presente. Em qualquer consideração sobre sustentabilidade, deve-se lembrar que a vida exige muita energia para se manter. No nível do indivíduo, a sustentabilidade do não equilíbrio é realizada por complexos processos autopoiéticos corporais. O corpo de um ser humano, capaz de viver cem anos, ao morrer torna-se um cadáver que se decompõe em dias. No nível planetário, a biosfera foi mantida por quase 4 bilhões de anos, o que exige uma fonte de energia constantemente renovada durante todo esse período.
A maior parte da energia renovável da Terra vem do espaço. O Sol é sua fonte. Darwin já havia percebido que o lento processo de especiação de sua teoria da evolução demandava muitos milhões de anos. Por meio do cálculo da taxa de desgaste do Weald, um grande vale no sul da Inglaterra, ele determinou uma idade de 300 milhões de anos para essa formação, implicando uma idade mínima para a Terra e para o Sol. Eis aí uma cifra para o período de tempo mínimo durante o qual a energia deve ser renovada: 300 milhões de anos. Hoje em dia, sabemos que a Terra tem 4,55 bilhões de anos. O Sol brilhou durante todo esse tempo e deverá brilhar por ainda 6,5 bilhões de anos até explodir, transformando-se em uma nebulosa.
Para planetas fora do Sistema Solar, a fonte de energia renovável principal também é o “sol”, a estrela central do sistema planetário. A vida requer energia livre, ou seja, com uma diferença de temperatura para que haja o fluxo de energia, e o brilho abrasador das estrelas é a fonte básica de energia livre do Universo. A origem da energia do Sol e das outras estrelas é nuclear. No atual estágio de sua evolução, o Sol converte, por fusão nuclear, hidrogênio em hélio, em sua região central. Assim, consumindo apenas 10% de sua massa, o Sol brilha por 11 bilhões de anos.
Como vimos, a maior parte de nossa energia renovável vem do espaço, proveniente do Sol. Agora, com a ESE, a energia renovável gerada pela humanidade vai para o espaço. Na verdade, os seres humanos sempre se serviram de energia renovável, solar em sua maior parte, como todos os outros seres vivos. Só recentemente passaram a depender de formas não renováveis de energia. A partir da Revolução Industrial, começamos a extrair energia do carvão mineral e depois do petróleo. Quando recorremos a combustíveis fósseis, servimo-nos de resíduos de ciclos químicos com vida curta do ponto de vista geológico e astronômico. A energia química é só uma forma provisória de armazenagem de energia. Se todo o Sol fosse feito de carvão, ele brilharia por 4 mil anos em vez de por 11 bilhões de anos. Combustíveis fósseis são extraídos de sepulturas de seres vivos, os fósseis. Resultam de ligeiros desvios dos ciclos de substâncias orgânicas recicladas pelos organismos. A biosfera segue a lógica de um ciclo aproximadamente fechado de “berço para berço”, no qual os restos, incluindo os cadáveres, dos seres vivos acabam por formar os corpos dos seres vivos de gerações posteriores.6 Porém, a humanidade passou a seguir uma lógica de “berço para túmulo”, em que o que produz é descartado como se ali fosse seu estágio final. Pior, pela dependência dos combustíveis fósseis, a lógica adotada pela sociedade moderna é a de “túmulo para túmulo”. As pequenas discrepâncias do comportamento cíclico da biosfera foram substituídas por um acúmulo exponencial de objetos em um extremo de uma linha e um consumo crescente de energia em outro.
Ao nos voltarmos para a energia solar, estamos indo diretamente à fonte mais importante de energia para a vida. A demanda mundial de energia é de 15 terawatts, uma fração mínima de toda a energia solar incidente na Terra: 175 mil terawatts. A ESE seria muito mais eficiente do que a gerada no solo. Apenas a absorção atmosférica, mesmo com céu claro, reduz em 35% a potência total incidente na Terra. Levando ainda em conta efeitos de latitude, clima, cobertura de nuvens e o ciclo dia-noite (no espaço a luz solar poderia ser coletada 24 horas), o ganho total de eficiência seria cerca de cinco vezes maior. A área terrestre que seria poupada poderia ser utilizada para produção de alimentos sem prejudicar a segurança alimentar. A ESE poderia ser direcionada para qualquer local do mundo e atender às variações das demandas ao longo do tempo e às necessidades distintas de cada região do globo. Não haveria a restrição de distância entre os locais de produção e de consumo de energia. A ESE não interferiria na cobertura vegetal nem na vida selvagem, diferentemente dos demais modos de produção de energia. Desse modo, não imporia qualquer pressão à biodiversidade. Finalmente, preservaria paisagens, contribuindo para a proteção do mundo simbólico e da rede das relações sociais.
No solo, a energia solar, apesar de ser uma boa opção em escala local, acarretaria problemas em nível global, pois é o modo de geração de energia que exige maiores extensões de terra.7 Suas formas eólica, de biomassa e fotovoltaica utilizam superfícies muito maiores do que outra maneira de captação de energia solar, que não tem sido muito mencionada: a energia hidrelétrica. Para gerar a mesma quantidade de energia, 1 km² de uma hidrelétrica corresponde a 6 km² para a geração fotovoltaica, 41 km² para a eólica e 208 km² para a por biomassa! Segundo estudos sobre os limites da Terra em relação a pressões antropogênicas, o limiar mais gravemente transgredido é o da perda da biodiversidade, com uma taxa de extinção de espécies cem a mil vezes superior ao nível pré-industrial.8 E o limiar da perda da biodiversidade correlaciona-se fortemente com o do uso do solo. Tecnologias mais avançadas poderiam reduzir a área utilizada pela biomassa. O Brasil é pioneiro nesse aspecto.9 Por exemplo, pesquisas aqui realizadas sobre a produção de etanol indicam como sua produtividade pode ser aumentada por um fator quatro. Porém, mesmo com uma área menor, as extensões ocupadas ainda são muito vastas. A energia eólica também exige grandes áreas, e a redução de sua ocupação do solo por novas tecnologias é apenas incremental, no máximo talvez 30%. Pelas grandes áreas que demanda, usar a energia solar para suprir o consumo de energia da Terra pode acarretar uma séria ameaça à biodiversidade. Se o consumo de eletricidade continuar crescendo (houve um aumento de 5,6% só em 2010), teremos um paradoxo: a energia solar, a energia renovável por excelência, poderia empurrar ainda mais o planeta rumo à sua sexta extinção em massa.
Já que estamos falando em extinções em massa, o que o fim dos dinossauros tem a ver com a ESE? Um artigo clássico de 1980, sobre uma causa extraterrestre para a extinção Cretáceo-Terciário, parte da inusitada observação de que, exatamente na camada de transição entre os sedimentos correspondentes a essas duas eras geológicas, o irídio apresenta superabundâncias de até 160 vezes as típicas da crosta terrestre. E isso em locais tão distantes entre si, como a Dinamarca e a Nova Zelândia. Ora, o irídio é o metal mais raro do grupo dos metais nobres da tabela periódica, o grupo da platina. Contudo, as abundâncias cósmicas desses elementos são muito maiores do que as terrestres, o que sugere um influxo de material extraterrestre. O artigo conclui que a origem do irídio seria um asteroide que caiu sobre a Terra, causando a última extinção em massa do planeta.10
As grandes quantidades de metais preciosos no espaço despertaram a cobiça humana. A empresa Planetary Resources anunciou seus planos de mineração de asteroides próximos da Terra (NEAs, na sigla em inglês) em busca de metais do grupo da platina.11 Um perfeito exemplo de um capitalismo de risco. Os NEAs, uma potencial ameaça pela possibilidade de queda no planeta, tornam-se mercadoria. Converte-se risco em oportunidade. Dos cerca de 9 mil NEAs conhecidos, uns 1.500 são tão fáceis de visitar quanto a Lua. A mineração espacial permitira a fabricação no espaço dos painéis solares da ESE. O espaço está no DNA da Planetary Resources. Seu cofundador, Peter Diamondis, criou o Prêmio X para a primeira nave privada que realizasse um voo suborbital, visando o turismo espacial.
Com as novas empresas espaciais, a expansão do capitalismo atingiu sua fronteira geográfica final, o espaço. As novas corporações trazem, além de vantagens, perigos. Mesmo os promotores da benigna ESE, ao louvarem a eliminação da competição entre as nações pelos recursos energéticos, acenam com a possibilidade de uma empresa que vai além do transnacional e se afirma como transplanetária, com o domínio do recurso que nos chega abundante e livremente do espaço, a energia. A missão da Planetary Resources, “expandir a base de recursos da humanidade para incluir o Sistema Solar”,12ecoa de modo insólito as palavras delirantes de Cecil Rhodes. Esse megaempresário do século XIX e colonizador britânico lamentava-se por não poder se expandir até o Sistema Solar: “Penso nessas estrelas que se vê no alto, à noite, esses vastos mundos que nunca poderemos atingir. Eu anexaria os planetas, se pudesse”.

Amâncio Friaça é astrofísico e pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). É membro do Conselho Editorial do Le Monde Diplomatique Brasil.


Ilustração: Gabriel K.


1    SpaceX, “Successful launch kicks off SpaceX’s historic mission” [Lançamento com sucesso dá início à missão histórica da SpaceX], 22 maio 2012. Disponível em: www.spacex.com/press.php?page=20120522.
2    Hannah Arendt, A condição humana, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1989.
3    JAXA. Entrevista com Yasuyuki Fukumuro, “Practical application of space-based solar power generation” [Aplicação prática da geração de energia solar baseada no espaço], 2012. Disponível em: www.jaxa.jp/article/interview/vol53/index_e.html.
4    Sustainable Energy for All, 2012. Ver www.sustainableenergyforall.org.
5    Painel Astrobiologia Energia e Sustentabilidade, IAG-USP, abr.-maio 2012. Ver www.astro.iag.usp.br/~amancio/energia-sustentabilidade.htm.
6    William McDonough e Michael Braungart, Cradle to cradle: remaking the way we make things [Berço para berço: refazendo o modo como fazemos as coisas], Nova York, North Point, 2002.
7    Adrian Cho, “Energy’s tricky tradeoffs” [Complicados dilemas da energia], Science, n.329, p. 786-7, 2010.
8    J. Rockström et al., “A safe operating space for humanity” [Um espaço operando de forma segura para a humanidade], Nature, n.461, p. 472-5, 2009.
9    Fabrício Marques, “A voz dos cientistas brasileiros na Rio+20”, Pesquisa Fapesp, n.193, p. 18-25, mar. 2012.
10    Luis W. Alvarez , Walter Alvarez, Frank Asaro e Helen V. Michel, “Extraterrestrial cause for the Cretaceous-Tertiary extinction” [Causa extraterrestre para a extinção do Cretáceo-Terciário], Nature, n.208, p. 1095-1108, 1980.
11    Spaceref, “Asteroid mining plans revealed by Planetary Resources, Inc.” [Planos de mineração de asteroides revelados pela Planetary Resources], 24 abr. 2012. Disponível em: www.spaceref.com/news/viewpr.html?pid=36833.
12    Disponível em: www.planetaryresources.com.
13    S. Gertrude Millin, Rhodes, Londres, 1933.


01 de Junho de 2012

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Pé de Vento



Animação para o projeto Pé de Vento, produzido pela Agência Capslock. O vídeo acima é uma compilação dos 10 meses de trabalho, entre fevereiro e dezembro de 2011. A íntegra do projeto pode ser conferido em www.pedevento.org.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Itaquera x Itaquerão


Itaquera, muito além da Copa do Mundo
A escolha de Itaquera como sede da abertura de um dos eventos midiáticos mais importantes do mundo pode ser entendida como uma homenagem simbólica aos habitantes do bairro e, contraditoriamente, como o ponto culminante dos processos de valorização fundiária, os quais se desdobrarão na expulsão dessa mesma população

por Tiarajú D'Andrea
Desde que foi anunciada a construção do estádio do Corinthians no bairro de Itaquera, em São Paulo, em setembro de 2010, o local virou assunto e centro das atenções mundiais. Nunca antes a região teve tanta visibilidade. No entanto, a exposição midiática não tem levado em consideração muitos aspectos da história de Itaquera.
A trajetória do bairro é antiga. Foi no longínquo ano de 1620 que surgiram algumas das primeiras referências à denominada Roça Itaquera, situada nos limites do Aldeamento de São Miguel. Dois séculos e meio se passaram até o acontecimento que moldou o desenvolvimento econômico da região: a inauguração da estação de trem de Itaquera, em 1875, pelo ramal da Central do Brasil. O impacto da chegada da estrada de ferro foi enorme, propiciando o transporte de seus moradores a outras regiões e das mercadorias produzidas em Itaquera para o Centro de São Paulo. Foi também ao redor da estação que se consolidou um pujante centro comercial.
A partir da década de 1920, imigrantes japoneses passaram a residir nas glebas rurais existentes na região. A principal atividade econômica dessas famílias era a produção de pêssegos em uma extensa área circundante à Mata do Carmo.
No transcorrer do século XX, processos econômicos foram aos poucos substituindo as áreas de roçado por vilas e loteamentos. Grandes levas populacionais provindas sobretudo da região Nordeste assentavam-se em Itaquera, atraídas pelos terrenos baratos e pela estação de trem, que possibilitava o deslocamento até o Centro.
De fato, o ambiente semirrural da região configurou-se como uma reserva de terras a serem incorporadas nos circuitos periféricos de valorização, expressos nos loteamentos e vilas, cujos terrenos seriam vendidos para a população de baixa renda. Esse processo foi lento e ocorreu fundamentalmente entre as décadas de 1940 e 1970. No alvorecer da ditadura militar, Itaquera era um bairro periférico não consolidado,1 ou seja, com pouca infraestrutura urbana. Sua população era composta de operários e trabalhadores assalariados no comércio e no ramo de serviços. Grande parte dessa população pagava em parcelas o sonho da casa própria. Urbanisticamente, os terrenos vazios, produtos da especulação imobiliária, contracenavam com muitas ruas de terra e precariedade.
A ocupação de Itaquera nos moldes aqui apresentados ocorreu mais ou menos até a década de 1970. Foi nessa década também que surgiram as primeiras favelas da região. Contudo, a partir de 1980 ocorreu uma explosão demográfica potencializada principalmente por um fenômeno urbanístico e social que marcaria para sempre a história do bairro: a construção das Cohabs.

Chegam os conjuntos habitacionais
Inaugurada em 1980 pelo então ditador João Batista Figueiredo, a Cohab José Bonifácio localiza-se em um enorme terreno ao lado das já citadas plantações de pêssegos. Não é casual que o local escolhido para a introdução dos edifícios tenha sido distante da centralidade representada pela estação. Na tarefa de ligar urbanística e socialmente a Cohab à mancha urbana já existente, uma série de agentes lucrou: o dono da empresa de transporte; as empreiteiras e construtoras, contratadas para realizar obras de infraestrutura urbana; os pequenos e os grandes especuladores imobiliários, apostando na valorização dos vazios urbanos entre uma e outra região. Essa é a história da periferia, uma lógica da desordem2em que a ordem foi o lucro fácil de diversos setores que atuaram no filão da urbanização.
Em outro âmbito, cabe destacar que o beabá do planejamento urbano prevê que primeiro se instale a infraestrutura para depois os moradores habitarem determinado local. No entanto, devido à já citada ordem da desordem, em Itaquera ocorreu o contrário: primeiro chegaram as pessoas, depois a infraestrutura estatal e num terceiro momento a iniciativa privada, desejosa de auferir renda em uma localização valorizada pela intervenção estatal.3Após a inauguração do primeiro conjunto habitacional, vários outros passaram a ser construídos.4 Os edifícios foram rapidamente povoados e a população pressionou o poder público por serviços essenciais como escolas, hospitais e postos de saúde, sendo em parte atendida, uma vez que até hoje a prestação de serviços públicos é deficitária. De certo, há toda uma construção social de apagamento da luta desses moradores por melhorias urbanas, e Itaquera foi e é um local fértil em lutas.

Mortes, apertos e lógica individualista
O esquecimento das lutas é também o esquecimento das mortes produzidas por esse modelo de urbanização. Em 1987, uma batida entre dois trens próximo à estação de Itaquera tirou a vida de mais de sessenta pessoas.Foi o maior acidente ferroviário da história de São Paulo. A causa: uma falha técnica, ocasionada pelo descaso do Estado brasileiro. As vítimas: trabalhadores, crianças, negros, nordestinos. Moradores da região. Pobres em geral. Aqueles que conformam uma massa sem vez, sem voz e sem possibilidade de contar sua própria história. Como síntese do episódio, no dia seguinte à tragédia os trens circulavam normalmente. São Paulo não pode parar. As engrenagens econômicas precisam seguir funcionando. A mão de obra barata da zona leste deveria apinhar-se na lata de sardinha e seguir sua marcha ao Centro. Aos mortos, nem um minuto de silêncio ou uma cruz na beira da via. A morte em massa no transporte foi apenas um acidente de percurso, silenciado e esquecido.
Na breve tentativa de periodização realizada por este texto, pode-se afirmar que a batida de trens ocorrida em fevereiro de 1987 foi o ponto máximo das precariedades de um bairroperiférico não consolidadoque transitava para se transformar em um bairro periférico consolidado, ou seja, uma localidade com infraestrutura urbana.5
O principal fato que evidencia essa transição dos padrões de urbanização do local foi a chegada do metrô, em setembro de 1988, um ano e meio após a batida de trens. A inauguração da Estação Corinthians-Itaquera colocou o bairro em um patamar diferente no que tange à sua relação com o Centro de cidade, diminuindo, mas não resolvendo, o problema da segregação socioespacial. Por outro lado, a abertura da estação referendou Itaquera enquanto centralidade da zona leste.
Com a chegada do metrô, o bairro também passou a ser palco de uma contraditória política de investimentos em infraestrutura viária. Começava-se um processo de transformação local, com a tentativa de substituição da antiga população moradora por uma população de classe média baixa. Se décadas atrás o bairro havia vivido a transição de um ambiente semirrural para um bolsão de loteamentos periféricos, foi no final da década de 1990 que se referendou o processo de aquisição dos terrenos baratos daperiferia consolidadapara inseri-los em circuitos mais elevados de valorização fundiária. Um novo projeto se impunha a Itaquera.
Em 1995, o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a Avenida Jacu-Pêssego, que atravessa o bairro de ponta a ponta; no ano 2000, foi inaugurada a linha de trem Itaquera-Guaianases, que serviu para desativar o trajeto da antiga estrada de ferro, tirando a linha férrea do centro do bairro e do local onde ocorreu a batida de trens. O trecho antigo foi abandonado por quatro anos, até que em 2004, por sobre seu traçado, foi inaugurada mais uma obra viária de grande porte: a Nova Radial Leste. Era um fato: o transporte individual havia sido priorizado em detrimento do transporte público. Nem a estação de trem de Itaquera se salvou. Enquanto tramitava o processo de tombamento da antiga estação, memória histórica do bairro, uma ação silenciosa da prefeitura a demoliu em 2004. Itaquera não tinha mais trem. Itaquera não tinha mais estação de trem. Aos poucos desaparecia tudo o que lembrava os pioneiros, os princípios, a raiz histórica do bairro. A memória era apagada. Uma outra história deveria ser contada...

A Nova Itaquera e o estádio da Copa
Como mencionado anteriormente,6 uma das faces da transformação de bairros da periferia é a chegada da iniciativa privada, desejosa de auferir lucro em localidades já beneficiadas com infraestrutura urbana. Ainda que vários padrões de urbanização existam de maneira concomitante em Itaquera, é evidente a ação de uma série de agentes visando à consolidação desse terceiro momento, que ocorre depois da chegada dos moradores e da introdução de infraestrutura urbana.
Como exemplo da “Nova Itaquera”, em 2007 foi inaugurado o Shopping Metrô Itaquera, explorando-se o potencial consumidor da população da região. No mesmo período, começou a ser inaugurada uma série de edifícios de médio padrão voltados à demanda da classe média baixa. Esses edifícios atraem os moradores de outros bairros interessados nos preços mais em conta que Itaquera oferece e atendem a uma parcela da população do bairro que ascendeu socialmente nos últimos anos. Dessa forma, é num momento histórico de transição e encarecimento do padrão de vida no bairro que é anunciada a construção do estádio do Corinthians, palco da abertura da Copa do Mundo.
Antes de propriamente discutir o evento, cabe fazer uma importante ressalva: o problema não é em si o estádio. O torcedor merecia um estádio próximo de sua residência, levando em conta que a zona leste é um reduto de corintianos. O fato de o Corinthians mandar partidas de futebol no Morumbi ou no Pacaembu só referendava a segregação socioespacial a que está submetido o morador/torcedor da zona leste. Definitivamente, o Pacaembu não fica próximo dessa população.
A questão principal é a forma como o estádio do Corinthians em Itaquera está sendo imposto. Nesse ponto, foi crucial a construção discursiva que efetuou o imbricamento entre a construção do estádio e a Copa, como se fossem elementos indissociáveis. A partir dessa costura, setores desejosos de que o Brasil sedie os jogos, principalmente pelos ganhos financeiros decorrentes, passaram a ter o apoio acrítico de um importante ator no cenário futebolístico − a torcida do Corinthians − e de um ator social cada vez mais importante: o morador da zona leste.
As armadilhas desses apoios são várias. Do ponto de vista futebolístico, a Copa vem sacramentar o cerco ao torcedor comum e ao torcedor organizado. Nos últimos anos, o futebol passa por um processo de elitização capitaneado por empresas televisivas e pelo aparato estatal jurídico-repressivo. Expresso no aumento cada vez maior do preço dos ingressos e na repressão generalizada às torcidas organizadas, vê-se um quadro perfeito para os que manejam o futebol como negócio: a elite e a classe média indo ao estádio, pagando caro, e os mais pobres em casa consumindo futebol via televisão, sem circular pela cidade e dando audiência às emissoras. Do ponto de vista do torcedor organizado, defender a Copa nesses termos é apoiar seu próprio fim.
Do ponto de vista urbanístico, os investimentos na região novamente priorizarão a lógica individualista expressa nas vias para automóveis, fundamentalmente ligando o estádio ao aeroporto. Para além da propaganda, essas obras em nada resolverão os problemas estruturais do bairro. Itaquera, assim como toda a zona leste, precisa de mais linhas de metrô, mas isso não foi levado em consideração pelos governantes.
Cabe lembrar também que as obras viárias e o parque linear previstos para a região pressupõem a retirada de 4.500 famílias moradoras de favelas. Como vem sendo prática na atual gestão municipal, não existe uma política de reassentamento dessas famílias na própria região. A questão das remoções é a pauta principal do Comitê Comunidades Unidas, que se organiza em Itaquera e exige do poder público uma política habitacional efetiva para essa população.
Levando em conta os planos apresentados pelas diferentes esferas governamentais, configura-se o seguinte cenário: obras viárias de grande porte e política habitacional privada. Ambos visam atender à classe média baixa em detrimento do investimento em moradia popular e metrô. Moradias populares garantiriam a permanência dos atuais moradores no bairro, e mais linhas de metrô são necessárias, uma vez que se sabe há muito tempo que transporte público de qualidade é a solução para São Paulo, e não avenidas.
De fato, o estádio poderia fazer parte de um projeto realmente sério de desenvolvimento da região, que beneficiasse os moradores também enquanto habitantes da cidade e trabalhadores, e não só em sua face torcedora. O problema do estádio é ele servir como catalisador de apoio a uma Copa que está longe de ser em benefício das classes populares. Pelo contrário, o evento referenda o processo social de apagamento do passado operário e nordestino do bairro de Itaquera. Cabe lembrar que não se é contra processos de urbanização e melhorias urbanas, mas a pergunta a ser feita é: de fato são intervenções que visam à melhoria das condições urbanas para os atuais moradores ou são intervenções pontuais que reatualizarão os processos de expulsão e segregação socioespacial?
Que Itaquera também seja daqueles que, com seu suor, história e lutas, edificaram o bairro. Grande parte dos moradores da região está sendo induzida por uma forte propaganda midiática a apoiar um projeto de cidade e sociedade que não é o seu. Desvelar esse equívoco contribui para que a população periférica formule seu próprio projeto. Para começar, o morador do bairro é quem deveria deter o naming rightsdo estádio, que poderia se chamar Mártires de Itaquera, em memória dos mortos de sua história.

Tiarajú D'Andrea
Morador de Itaquera e corintiano. Doutorando em Sociologia pela USP, é autor da dissertação de mestrado Nas Tramas da segregação: o real panorama da pólis, São Paulo, Departamento de Sociologia (FFLCH - USP), 2008.



1 Os termos periferia consolidada e periferia não consolidada utilizados neste texto baseiam-se na conceituação efetuada por Haroldo Torres, “A fronteira paulistana”. In: Eduardo Marques e Haroldo Torres (orgs.), São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais, Editora Senac, São Paulo, 2005. Segundo o autor, periferia consolidada seriam os bairros da periferia de São Paulo com nível satisfatório de serviços públicos e de infraestrutura urbana (serviços de saúde e de educação, transporte público, asfaltamento, redes de água, esgoto e eletricidade, entre outros). Em contrapartida, a denominada periferia não consolidada (ou fronteira urbana) seria caracterizada pela precariedade da existência desses serviços. Outra grande diferença entre os dois padrões seriam as taxas de crescimento demográfico, médias no primeiro caso e altas ou altíssimas no segundo. Sobre o assunto, recomenda-se também o trabalho de Camila Saraiva, A periferia consolidada em São Paulo: categoria e realidade em construção, dissertação de mestrado em Planejamento Urbano e Regional (Ippur), Rio de Janeiro, 2008.
2 O termo lógica da desordem foi cunhado por Lúcio Kowarick em artigo homônimo publicado em 1979. Nele, o autor desvela o aparente caos existente no processo de urbanização da cidade de São Paulo. Para tanto, afirma que é a ordem da racionalidade capitalista, operada por distintos agentes e sem planejamento, que resultaria numa certa desordem urbana.
3 Este argumento se baseia no trabalho de Yvonne Mautner, “A periferia como fronteira de expansão do capital”. In: Csaba Deák e Sueli Shiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil, Fupam/Edusp, São Paulo, 1999, p.245-259.
4 Sobre a introdução das Cohabs na zona leste de São Paulo, ver, entre outros, os trabalhos de Amélia Damiani, “A cidade (des)ordenada: concepção e cotidiano do Conjunto Habitacional Itaquera I”, tese de doutorado em Geografia (FFLCH-USP), São Paulo, 1993; Letícia Sigolo, “Conjunto José Bonifácio: discurso hegemônico e cantos residuais na produção do espaço urbano”, trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), São Paulo, 2006; e Tiarajú D’Andrea, “Distanciamentos geográficos e acercamentos humanos”, Divercidade, São Paulo, mar. 2008.
5 Cabe destacar que esses marcos temporais apenas indicam processos de mudanças que ocorrem de maneira lenta, assim como se deve esclarecer que esses padrões de ocupação coexistem no tempo.
6 Mautner, op. cit.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Veta, Jorge!


quarta-feira, 14 de março de 2012

A Lei Geral da Copa, essa aberração

O inacreditável Projeto de Lei 2330/2011, conhecido como Lei Geral da Copa, continua em tramitação no congresso, de onde, aprovado, seguirá para o Senado, onde dificilmente será barrado. 
É assustador que, com tantas violações de leis e direitos, a maior polêmica recaia sobre a liberação ou não de bebidas alcoólicas dentro dos estádios durante os jogos. Não que isso seja desimportante, afinal, que justificativa há para considerar nocivo o consumo de álcool nos estádios fora da Copa do Mundo e inofensivo durante o evento? No entanto, o projeto, que teve a votação adiada para a semana que vem, infringe tantos pontos da nossa legislação, abrindo exceções inaceitáveis para a FIFA e seus parceiros, que a polêmica sobre a venda de bebidas acaba servindo como cortina de fumaça. Mais que o estado de exceção que a referida lei nos pode impor durante a Copa do Mundo, a abertura de precedentes que podem transformar o provisório em permanente - alquimia mais que comum no Brasil - promete nos retirar direitos adquiridos depois de muita luta.

Abaixo, uma lista de pontos que me saltaram aos olhos ao ler o projeto.


Nossa Lei de propriedade industrial diz o seguinte:

Art. 124. Não são registráveis como marca: 
...
XIII - nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento; 

A Lei Geral da Copa, no entanto, nega essa vedação em seu Art. 3º, Inciso IV - Parágrafo único, que tem o seguinte texto: "Não se aplica à proteção prevista neste artigo a vedação de que trata o
art. 124, inciso XIII, da Lei no 9.279, de 1996."

Ou seja, o NOME Copa do Mundo FIFA 2014, em quaisquer idiomas em que seja registrado, apesar de disposição contrária explícita em uma LEI NACIONAL, pode ser registrado como de propriedade da FIFA e sua utilização não autorizada exposta aos rigores da lei.

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Art. 10. A FIFA ficará dispensada do pagamento de eventuais retribuições referentes a todos os procedimentos no âmbito do INPI até 31 de dezembro de 2014.

Ainda que na Lei de Propriedade Industrial tenhamos o seguinte:

Art. 155. O pedido deverá referir-se a um único sinal distintivo e, nas condições estabelecidas pelo INPI, conterá:

I - requerimento;

II - etiquetas, quando for o caso; e

III - comprovante do pagamento da retribuição relativa ao depósito.

É incompreensível essa isenção dada à FIFA.

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Art. 11. A União colaborará com Estados, Distrito Federal e Municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à FIFA e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso.

Parágrafo único. Os limites das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição serão tempestivamente estabelecidos pela autoridade competente, considerados os requerimentos da FIFA ou de terceiros por ela indicados.

Art. 23. Para os fins desta Lei, e observadas as disposições da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, consideram-se atos ilícitos as seguintes condutas, praticadas sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, entre outros:
I - atividades de publicidade, inclusive oferta de provas de comida ou bebida, distribuição de panfletos ou outros materiais promocionais ou ainda atividades similares de cunho publicitário nos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;
II- publicidade ostensiva em veículos automotores, estacionados ou circulando pelos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;
III - publicidade aérea ou náutica, inclusive por meio do uso de balões, aeronaves ou embarcações, nos Locais Oficiais de Competição, em suas principais vias de acesso, nas áreas a que se refere o art. 11 ou em lugares que sejam claramente visíveis a partir daqueles;

São artigos totalmente inadmissíveis, uma vez que delegam a uma entidade privada internacional plenos poderes para controlar o comércio em vias públicas.

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Art. 16. Reproduzir, imitar ou falsificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Art. 17. Importar, exportar, vender, oferecer, distribuir ou expor para venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais, para fins comerciais ou de publicidade, salvo o uso destes pela FIFA ou por pessoa autorizada pela FIFA, ou pela imprensa para fins de ilustração de artigos jornalísticos sobre os Eventos:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
Art. 18. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividades comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica.
Art. 19. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos Locais Oficiais dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Art. 20. Nos crimes previstos nesta Seção somente se procede mediante representação da FIFA.
Art. 21. Na fixação da pena de multa prevista nesta seção e nos artigos 41-B a 41-G da Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003, quando os delitos forem relacionados às Competições, o limite a que se refere o §1o do art. 49 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pode ser acrescido ou reduzido em até dez vezes, de acordo com as condições financeiras do autor da infração e da vantagem indevidamente auferida.
Art. 22. Os tipos penais previstos nesta Seção terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014.

É um descalabro que uma entidade internacional se sinta no direito de modificar, para defender seus interesses particulares, nosso Código Penal.

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Art. 23. Para os fins desta Lei, e observadas as disposições da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, consideram-se atos ilícitos as seguintes condutas, praticadas sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, entre outros:
...
IV - exibição pública das Partidas, por qualquer meio de comunicação, em local público ou privado de acesso público, associada à promoção comercial de produto, marca ou serviço ou em que seja cobrado ingresso;

Este inciso impediria, por exemplo, a exibição de partidas da Copa do Mundo 2014 em bares e restaurantes, o que é uma prática há muito disseminada no país, já fazendo parte da nossa cultura futebolística, além de impactar severamente os rendimentos dos comerciantes que do evento costumam se beneficiar, reduzindo de forma sensível o aquecimento da economia atrelado historicamente a eventos dessa natureza, o que corresponde a uma das principais motivações do esforço brasileiro de sediar o evento.

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Art. 26. Até 31 de dezembro de 2014 serão concedidos, sem qualquer restrição quanto à nacionalidade, raça ou credo, vistos de entrada para:
...
XI - espectadores que possuam ingressos ou confirmação de aquisição de ingressos válidos para qualquer Evento e todos os indivíduos que demonstrem seu envolvimento oficial com os Eventos, contanto que evidenciem de maneira razoável que sua entrada no país possui alguma relação com qualquer atividade relacionada aos Eventos.
§ 1o Considera-se documentação suficiente para obtenção do visto de entrada ou para o ingresso no território nacional o passaporte válido ou documento de viagem equivalente, em conjunto com qualquer instrumento que demonstre a sua vinculação com os Eventos, nos termos deste artigo.

Estes dispositivos delegam à FIFA um nível de controle totalmente inaceitável das fronteiras brasileiras. É um completo desrespeito à soberania nacional.

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Art. 27. Até 31 de dezembro de 2014, serão emitidas as permissões de trabalho, caso exigíveis, para as pessoas mencionadas nos incisos I a X do art. 26, desde que comprovado, por documento expedido pela FIFA ou por terceiro por ela indicado, que a entrada no País se destina ao desempenho de atividades relacionadas aos Eventos.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, poderão ser estabelecidos procedimentos específicos para concessão de permissões de trabalho.

O parágrafo único é injustificável, além de abrir espaço para a contratação mínima de mão-de-obra brasileira, o que, mais uma vez, se choca contra uma das maiores motivações do esforço nacional de sediar o evento.

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Art. 28. Os vistos e permissões de que tratam os arts. 26 e 27 serão emitidos em caráter prioritário, sem qualquer custo, e os requerimentos serão concentrados em um único órgão da administração pública federal.

O excesso de facilidades para espectadores estrangeiros, além de sobrecarregar a Polícia Federal, contrasta com o tratamento desdenhoso dispensado ao torcedor brasileiro, especialmente o mais pobre, que terá que disputar os poucos ingressos a preços mais baixos - mas que não merecem ser adjetivados como populares - tendo ainda que se submeter a um injusto e humilhante sorteio, por parte da FIFA, para garantir aquilo que deveria ser uma das prioridades do evento, o fácil acesso do torcedor local à festa em que é o anfitrião.

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Art. 30. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.

Não há nada que justifique ou mesmo explique a União se responsabilizar por quaisquer acidentes ou incidentes que porventura venham a trazer prejuízos à FIFA. A disposição nula da FIFA em assumir qualquer risco em uma empreitada de onde espera extrair lucros exorbitantes é algo entre o arrogante e o desprezível. O cidadão brasileiro não está disposto a arcar com isso.

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Art. 33. Os critérios para cancelamento, devolução e reembolso de Ingressos, assim como para alocação, realocação, marcação, remarcação e cancelamento de assentos nos locais dos Eventos
serão definidos pela FIFA, a qual poderá inclusive dispor sobre a possibilidade:
...
II - da venda de Ingresso de forma avulsa ou conjuntamente com pacotes turísticos ou de hospitalidade; e 

III - de estabelecimento de cláusula penal no caso de desistência da aquisição do Ingresso após a confirmação de que o pedido de Ingresso foi aceito ou após o pagamento do valor do Ingresso,
independentemente da forma ou do local da submissão do pedido ou da aquisição do Ingresso.

O inciso II fere o art. 39 do Código de Defesa do Consumidor, em cujo texto temos o seguinte:

É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)
I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

O inciso III fere o art. 49 do mesmo código, que tem aí o seguinte texto:
O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

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Art. 37. Poderão ser criados Juizados Especiais, varas, turmas ou câmaras especializadas para o processamento e julgamento das causas relacionadas aos Eventos.

Mais um disparate. Assumir que a maneira como está organizado o sistema jurídico brasileiro não é suficiente para tratar dos temas relativos a um evento esportivo, é admitir que o evento em questão é maior que o próprio país.

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Art. 38. A FIFA, Subsidiárias FIFA no Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados são isentos do adiantamento de custas, emolumentos, caução, honorários periciais e quaisquer outras despesas devidas aos órgãos da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, em qualquer instância, e aos tribunais superiores, assim como não serão condenados em custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé.

Outro artigo carregado de inexplicável e excessiva proteção à FIFA. O conjunto desses privilégios configuram uma quase imunidade das pessoas ligada a essa entidade, o que não é comparável com o tratamento dado ao cidadão brasileiro, constituindo  inaceitável ato discriminatório.

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