segunda-feira, 14 de maio de 2012

Pé de Vento



Animação para o projeto Pé de Vento, produzido pela Agência Capslock. O vídeo acima é uma compilação dos 10 meses de trabalho, entre fevereiro e dezembro de 2011. A íntegra do projeto pode ser conferido em www.pedevento.org.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Itaquera x Itaquerão


Itaquera, muito além da Copa do Mundo
A escolha de Itaquera como sede da abertura de um dos eventos midiáticos mais importantes do mundo pode ser entendida como uma homenagem simbólica aos habitantes do bairro e, contraditoriamente, como o ponto culminante dos processos de valorização fundiária, os quais se desdobrarão na expulsão dessa mesma população

por Tiarajú D'Andrea
Desde que foi anunciada a construção do estádio do Corinthians no bairro de Itaquera, em São Paulo, em setembro de 2010, o local virou assunto e centro das atenções mundiais. Nunca antes a região teve tanta visibilidade. No entanto, a exposição midiática não tem levado em consideração muitos aspectos da história de Itaquera.
A trajetória do bairro é antiga. Foi no longínquo ano de 1620 que surgiram algumas das primeiras referências à denominada Roça Itaquera, situada nos limites do Aldeamento de São Miguel. Dois séculos e meio se passaram até o acontecimento que moldou o desenvolvimento econômico da região: a inauguração da estação de trem de Itaquera, em 1875, pelo ramal da Central do Brasil. O impacto da chegada da estrada de ferro foi enorme, propiciando o transporte de seus moradores a outras regiões e das mercadorias produzidas em Itaquera para o Centro de São Paulo. Foi também ao redor da estação que se consolidou um pujante centro comercial.
A partir da década de 1920, imigrantes japoneses passaram a residir nas glebas rurais existentes na região. A principal atividade econômica dessas famílias era a produção de pêssegos em uma extensa área circundante à Mata do Carmo.
No transcorrer do século XX, processos econômicos foram aos poucos substituindo as áreas de roçado por vilas e loteamentos. Grandes levas populacionais provindas sobretudo da região Nordeste assentavam-se em Itaquera, atraídas pelos terrenos baratos e pela estação de trem, que possibilitava o deslocamento até o Centro.
De fato, o ambiente semirrural da região configurou-se como uma reserva de terras a serem incorporadas nos circuitos periféricos de valorização, expressos nos loteamentos e vilas, cujos terrenos seriam vendidos para a população de baixa renda. Esse processo foi lento e ocorreu fundamentalmente entre as décadas de 1940 e 1970. No alvorecer da ditadura militar, Itaquera era um bairro periférico não consolidado,1 ou seja, com pouca infraestrutura urbana. Sua população era composta de operários e trabalhadores assalariados no comércio e no ramo de serviços. Grande parte dessa população pagava em parcelas o sonho da casa própria. Urbanisticamente, os terrenos vazios, produtos da especulação imobiliária, contracenavam com muitas ruas de terra e precariedade.
A ocupação de Itaquera nos moldes aqui apresentados ocorreu mais ou menos até a década de 1970. Foi nessa década também que surgiram as primeiras favelas da região. Contudo, a partir de 1980 ocorreu uma explosão demográfica potencializada principalmente por um fenômeno urbanístico e social que marcaria para sempre a história do bairro: a construção das Cohabs.

Chegam os conjuntos habitacionais
Inaugurada em 1980 pelo então ditador João Batista Figueiredo, a Cohab José Bonifácio localiza-se em um enorme terreno ao lado das já citadas plantações de pêssegos. Não é casual que o local escolhido para a introdução dos edifícios tenha sido distante da centralidade representada pela estação. Na tarefa de ligar urbanística e socialmente a Cohab à mancha urbana já existente, uma série de agentes lucrou: o dono da empresa de transporte; as empreiteiras e construtoras, contratadas para realizar obras de infraestrutura urbana; os pequenos e os grandes especuladores imobiliários, apostando na valorização dos vazios urbanos entre uma e outra região. Essa é a história da periferia, uma lógica da desordem2em que a ordem foi o lucro fácil de diversos setores que atuaram no filão da urbanização.
Em outro âmbito, cabe destacar que o beabá do planejamento urbano prevê que primeiro se instale a infraestrutura para depois os moradores habitarem determinado local. No entanto, devido à já citada ordem da desordem, em Itaquera ocorreu o contrário: primeiro chegaram as pessoas, depois a infraestrutura estatal e num terceiro momento a iniciativa privada, desejosa de auferir renda em uma localização valorizada pela intervenção estatal.3Após a inauguração do primeiro conjunto habitacional, vários outros passaram a ser construídos.4 Os edifícios foram rapidamente povoados e a população pressionou o poder público por serviços essenciais como escolas, hospitais e postos de saúde, sendo em parte atendida, uma vez que até hoje a prestação de serviços públicos é deficitária. De certo, há toda uma construção social de apagamento da luta desses moradores por melhorias urbanas, e Itaquera foi e é um local fértil em lutas.

Mortes, apertos e lógica individualista
O esquecimento das lutas é também o esquecimento das mortes produzidas por esse modelo de urbanização. Em 1987, uma batida entre dois trens próximo à estação de Itaquera tirou a vida de mais de sessenta pessoas.Foi o maior acidente ferroviário da história de São Paulo. A causa: uma falha técnica, ocasionada pelo descaso do Estado brasileiro. As vítimas: trabalhadores, crianças, negros, nordestinos. Moradores da região. Pobres em geral. Aqueles que conformam uma massa sem vez, sem voz e sem possibilidade de contar sua própria história. Como síntese do episódio, no dia seguinte à tragédia os trens circulavam normalmente. São Paulo não pode parar. As engrenagens econômicas precisam seguir funcionando. A mão de obra barata da zona leste deveria apinhar-se na lata de sardinha e seguir sua marcha ao Centro. Aos mortos, nem um minuto de silêncio ou uma cruz na beira da via. A morte em massa no transporte foi apenas um acidente de percurso, silenciado e esquecido.
Na breve tentativa de periodização realizada por este texto, pode-se afirmar que a batida de trens ocorrida em fevereiro de 1987 foi o ponto máximo das precariedades de um bairroperiférico não consolidadoque transitava para se transformar em um bairro periférico consolidado, ou seja, uma localidade com infraestrutura urbana.5
O principal fato que evidencia essa transição dos padrões de urbanização do local foi a chegada do metrô, em setembro de 1988, um ano e meio após a batida de trens. A inauguração da Estação Corinthians-Itaquera colocou o bairro em um patamar diferente no que tange à sua relação com o Centro de cidade, diminuindo, mas não resolvendo, o problema da segregação socioespacial. Por outro lado, a abertura da estação referendou Itaquera enquanto centralidade da zona leste.
Com a chegada do metrô, o bairro também passou a ser palco de uma contraditória política de investimentos em infraestrutura viária. Começava-se um processo de transformação local, com a tentativa de substituição da antiga população moradora por uma população de classe média baixa. Se décadas atrás o bairro havia vivido a transição de um ambiente semirrural para um bolsão de loteamentos periféricos, foi no final da década de 1990 que se referendou o processo de aquisição dos terrenos baratos daperiferia consolidadapara inseri-los em circuitos mais elevados de valorização fundiária. Um novo projeto se impunha a Itaquera.
Em 1995, o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a Avenida Jacu-Pêssego, que atravessa o bairro de ponta a ponta; no ano 2000, foi inaugurada a linha de trem Itaquera-Guaianases, que serviu para desativar o trajeto da antiga estrada de ferro, tirando a linha férrea do centro do bairro e do local onde ocorreu a batida de trens. O trecho antigo foi abandonado por quatro anos, até que em 2004, por sobre seu traçado, foi inaugurada mais uma obra viária de grande porte: a Nova Radial Leste. Era um fato: o transporte individual havia sido priorizado em detrimento do transporte público. Nem a estação de trem de Itaquera se salvou. Enquanto tramitava o processo de tombamento da antiga estação, memória histórica do bairro, uma ação silenciosa da prefeitura a demoliu em 2004. Itaquera não tinha mais trem. Itaquera não tinha mais estação de trem. Aos poucos desaparecia tudo o que lembrava os pioneiros, os princípios, a raiz histórica do bairro. A memória era apagada. Uma outra história deveria ser contada...

A Nova Itaquera e o estádio da Copa
Como mencionado anteriormente,6 uma das faces da transformação de bairros da periferia é a chegada da iniciativa privada, desejosa de auferir lucro em localidades já beneficiadas com infraestrutura urbana. Ainda que vários padrões de urbanização existam de maneira concomitante em Itaquera, é evidente a ação de uma série de agentes visando à consolidação desse terceiro momento, que ocorre depois da chegada dos moradores e da introdução de infraestrutura urbana.
Como exemplo da “Nova Itaquera”, em 2007 foi inaugurado o Shopping Metrô Itaquera, explorando-se o potencial consumidor da população da região. No mesmo período, começou a ser inaugurada uma série de edifícios de médio padrão voltados à demanda da classe média baixa. Esses edifícios atraem os moradores de outros bairros interessados nos preços mais em conta que Itaquera oferece e atendem a uma parcela da população do bairro que ascendeu socialmente nos últimos anos. Dessa forma, é num momento histórico de transição e encarecimento do padrão de vida no bairro que é anunciada a construção do estádio do Corinthians, palco da abertura da Copa do Mundo.
Antes de propriamente discutir o evento, cabe fazer uma importante ressalva: o problema não é em si o estádio. O torcedor merecia um estádio próximo de sua residência, levando em conta que a zona leste é um reduto de corintianos. O fato de o Corinthians mandar partidas de futebol no Morumbi ou no Pacaembu só referendava a segregação socioespacial a que está submetido o morador/torcedor da zona leste. Definitivamente, o Pacaembu não fica próximo dessa população.
A questão principal é a forma como o estádio do Corinthians em Itaquera está sendo imposto. Nesse ponto, foi crucial a construção discursiva que efetuou o imbricamento entre a construção do estádio e a Copa, como se fossem elementos indissociáveis. A partir dessa costura, setores desejosos de que o Brasil sedie os jogos, principalmente pelos ganhos financeiros decorrentes, passaram a ter o apoio acrítico de um importante ator no cenário futebolístico − a torcida do Corinthians − e de um ator social cada vez mais importante: o morador da zona leste.
As armadilhas desses apoios são várias. Do ponto de vista futebolístico, a Copa vem sacramentar o cerco ao torcedor comum e ao torcedor organizado. Nos últimos anos, o futebol passa por um processo de elitização capitaneado por empresas televisivas e pelo aparato estatal jurídico-repressivo. Expresso no aumento cada vez maior do preço dos ingressos e na repressão generalizada às torcidas organizadas, vê-se um quadro perfeito para os que manejam o futebol como negócio: a elite e a classe média indo ao estádio, pagando caro, e os mais pobres em casa consumindo futebol via televisão, sem circular pela cidade e dando audiência às emissoras. Do ponto de vista do torcedor organizado, defender a Copa nesses termos é apoiar seu próprio fim.
Do ponto de vista urbanístico, os investimentos na região novamente priorizarão a lógica individualista expressa nas vias para automóveis, fundamentalmente ligando o estádio ao aeroporto. Para além da propaganda, essas obras em nada resolverão os problemas estruturais do bairro. Itaquera, assim como toda a zona leste, precisa de mais linhas de metrô, mas isso não foi levado em consideração pelos governantes.
Cabe lembrar também que as obras viárias e o parque linear previstos para a região pressupõem a retirada de 4.500 famílias moradoras de favelas. Como vem sendo prática na atual gestão municipal, não existe uma política de reassentamento dessas famílias na própria região. A questão das remoções é a pauta principal do Comitê Comunidades Unidas, que se organiza em Itaquera e exige do poder público uma política habitacional efetiva para essa população.
Levando em conta os planos apresentados pelas diferentes esferas governamentais, configura-se o seguinte cenário: obras viárias de grande porte e política habitacional privada. Ambos visam atender à classe média baixa em detrimento do investimento em moradia popular e metrô. Moradias populares garantiriam a permanência dos atuais moradores no bairro, e mais linhas de metrô são necessárias, uma vez que se sabe há muito tempo que transporte público de qualidade é a solução para São Paulo, e não avenidas.
De fato, o estádio poderia fazer parte de um projeto realmente sério de desenvolvimento da região, que beneficiasse os moradores também enquanto habitantes da cidade e trabalhadores, e não só em sua face torcedora. O problema do estádio é ele servir como catalisador de apoio a uma Copa que está longe de ser em benefício das classes populares. Pelo contrário, o evento referenda o processo social de apagamento do passado operário e nordestino do bairro de Itaquera. Cabe lembrar que não se é contra processos de urbanização e melhorias urbanas, mas a pergunta a ser feita é: de fato são intervenções que visam à melhoria das condições urbanas para os atuais moradores ou são intervenções pontuais que reatualizarão os processos de expulsão e segregação socioespacial?
Que Itaquera também seja daqueles que, com seu suor, história e lutas, edificaram o bairro. Grande parte dos moradores da região está sendo induzida por uma forte propaganda midiática a apoiar um projeto de cidade e sociedade que não é o seu. Desvelar esse equívoco contribui para que a população periférica formule seu próprio projeto. Para começar, o morador do bairro é quem deveria deter o naming rightsdo estádio, que poderia se chamar Mártires de Itaquera, em memória dos mortos de sua história.

Tiarajú D'Andrea
Morador de Itaquera e corintiano. Doutorando em Sociologia pela USP, é autor da dissertação de mestrado Nas Tramas da segregação: o real panorama da pólis, São Paulo, Departamento de Sociologia (FFLCH - USP), 2008.



1 Os termos periferia consolidada e periferia não consolidada utilizados neste texto baseiam-se na conceituação efetuada por Haroldo Torres, “A fronteira paulistana”. In: Eduardo Marques e Haroldo Torres (orgs.), São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais, Editora Senac, São Paulo, 2005. Segundo o autor, periferia consolidada seriam os bairros da periferia de São Paulo com nível satisfatório de serviços públicos e de infraestrutura urbana (serviços de saúde e de educação, transporte público, asfaltamento, redes de água, esgoto e eletricidade, entre outros). Em contrapartida, a denominada periferia não consolidada (ou fronteira urbana) seria caracterizada pela precariedade da existência desses serviços. Outra grande diferença entre os dois padrões seriam as taxas de crescimento demográfico, médias no primeiro caso e altas ou altíssimas no segundo. Sobre o assunto, recomenda-se também o trabalho de Camila Saraiva, A periferia consolidada em São Paulo: categoria e realidade em construção, dissertação de mestrado em Planejamento Urbano e Regional (Ippur), Rio de Janeiro, 2008.
2 O termo lógica da desordem foi cunhado por Lúcio Kowarick em artigo homônimo publicado em 1979. Nele, o autor desvela o aparente caos existente no processo de urbanização da cidade de São Paulo. Para tanto, afirma que é a ordem da racionalidade capitalista, operada por distintos agentes e sem planejamento, que resultaria numa certa desordem urbana.
3 Este argumento se baseia no trabalho de Yvonne Mautner, “A periferia como fronteira de expansão do capital”. In: Csaba Deák e Sueli Shiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil, Fupam/Edusp, São Paulo, 1999, p.245-259.
4 Sobre a introdução das Cohabs na zona leste de São Paulo, ver, entre outros, os trabalhos de Amélia Damiani, “A cidade (des)ordenada: concepção e cotidiano do Conjunto Habitacional Itaquera I”, tese de doutorado em Geografia (FFLCH-USP), São Paulo, 1993; Letícia Sigolo, “Conjunto José Bonifácio: discurso hegemônico e cantos residuais na produção do espaço urbano”, trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), São Paulo, 2006; e Tiarajú D’Andrea, “Distanciamentos geográficos e acercamentos humanos”, Divercidade, São Paulo, mar. 2008.
5 Cabe destacar que esses marcos temporais apenas indicam processos de mudanças que ocorrem de maneira lenta, assim como se deve esclarecer que esses padrões de ocupação coexistem no tempo.
6 Mautner, op. cit.